LIBERDADE E DIREITOS
Por Hindemburg Melão Jr
Nas últimas semanas, as redes sociais foram infestadas por postagens políticas, algumas exaltando as supostas virtudes de alguns candidatos, outras condenando as supostas vicissitudes de outros.
Em meio a tudo isso, procurei selecionar algum material a respeito do qual eu pudesse me manifestar de forma neutra. Por exemplo: um vídeo com Ciro Gomes no qual ele fala sobre Astrofísica, uma entrevista com Bolsonaro na qual ele opina sobre supostas diferenças salariais entre gêneros etc.
Neste artigo vou apenas reproduzir um texto que publiquei em março de 2015, que trata de alguns temas relacionados às campanhas de vários candidatos. Não me posiciono em favor de nenhum candidato específico, nem contra.
O artigo não trata de eleições, mas sim de Ética.
Espero que minha opinião sobre alguns dos temas abordados possa contribuir para que os leitores reflitam sobre seus valores, sobre seus ideais, sobre seus anseios, e que os incentive a votar no candidato que gostariam que ocupasse o cargo de presidente do país, em vez de votar em B para evitar que A seja eleito, ou votar em A para evitar que B seja eleito. Procure conhecer as propostas dos candidatos, a história de cada candidato, a história de cada partido, e procure fazer uma escolha baseada em motivos que deixem seus pais orgulhosos, seus filhos orgulhosos, todas as pessoas de bem ligadas a você fiquem orgulhosas, e você também se sinta orgulhoso por ter feito a escolha certa.
A seguir, transcrevo o artigo de 2015:
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O amigo Rafel Zakowicz postou esta imagem no facebook, e achei que deveria comentar um pouco.
Se a pessoa fuma num planeta onde exista uma atmosfera razoavelmente densa, como a Terra, a fumaça fica em suspensão e vai se espalhar quase como num movimento Browniano. Isso faz com que um não-fumante seja afetado a vários metros de distância. Um usuário de álcool que não respeite as leis de trânsito pode colocar em risco a vida e a segurança de muitas pessoas, pode se tornar violento com os filhos e esposa etc. Um usuário de cocaína e similares também pode ter comportamento violento, com probabilidade maior do que se não estivesse sob efeito dessa droga. Portanto a liberdade para fumar e usar outras drogas afeta a saúde, a segurança e a vida das pessoas que não usam, de modo que estas que não usam devem ter o direito de se defender e, assim, interferir no direito das que usam.
A pornografia e a prostituição são fenômenos complexos, em que, embora haja consentimento de ambas as partes, há exploração, abuso e incentivo financeiro a hábitos que multiplicam as probabilidades de disseminação de DSTs, e algumas pessoas que não são simpatizantes acabam sendo prejudicadas, como as esposas/namoradas de homens que se relacionam com prostitutas e com mulheres que se relacionam com atores pornôs. Além disso, a pornografia geralmente está associada ao uso de drogas, porque elas precisam fugir da realidade para suportar a vida que levam, seitas do mal e zoofilia, exploração infantil etc.
A liberação do aborto, conforme corroborado pelos estudos divulgados por Steven Levitt, reduz a criminalidade nas décadas seguintes, embora haja complicações éticas envolvidas. Antes de conhecer a obra de Levitt, eu era a favor da permissão do aborto em casos de estupro que implicassem gravidez. Mas ao compreender a dinâmica de um processo muito mais abrangente, que prejudica toda a comunidade se o aborto for proibido, minha visão sobre o tema foi ampliada (publicarei um artigo exclusivo sobre esse tema).
A economista Anne Turgot disse certa vez que “Liberdade é o direito de fazer tudo que não prejudique a liberdade dos outros”. É quase isso (ou deveria ser).
De modo geral, sou a favor da liberdade até o ponto em que ela tangencia e começa a invadir a liberdade do próximo, ou prejudica a Natureza, ou afeta a harmonia geral de alguma forma.
Uma pessoa que gosta de torturar animais, por exemplo, não pode ter liberdade pra agir assim. Mas uma pessoa que trabalha matando gado e aves, ou comendo cadáveres incinerados de gado, aves, peixes, ovinos, suínos, carnes exóticas, deveria ter liberdade para isso? Por que os cachorros e gatos deveriam ser mais protegidos que os bois ou frangos? E o extermínio de vírus, bactérias e insetos que atuam como vetores patogênicos? Quais devem ser os critérios para determinar quem deve morrer para que outros possam viver? Ou quem deve sofrer para que outros possam ser felizes?
Em Irmãos Karamazov, Ivan coloca para a Aliôcha a seguinte situação: “suponhamos que seja necessário, para que a humanidade seja eternamente feliz, que seja inevitável e essencial torturar durante uma eternidade uma pequena criatura, tão só a um menino, não mais que um. Tu o consentirias?”
Na minha visão, se a humanidade consentisse nisso para ser feliz, eu seria contra, porque a humanidade não mereceria ser feliz. Por outro lado, se a humanidade fosse contra o sacrifício de um para o benefício de todos, ou se a humanidade não tivesse poder de opinar no caso, eu não saberia como decidir porque a situação está exposta muito superficialmente.
Alguns dos pontos que precisariam ser mais bem esclarecidos, para que se pudesse fazer uma análise adequada, são: em que consistiria exatamente a tortura? Deixar de usar o whatsapp eternamente? Deixar de comer chocolate? Colocar uma ave de rapina para comer um pedaço do fígado do menino todo dia? Choques e queimaduras? Tortura psicológica?
A decisão dependeria da intensidade e da frequência da tortura, dependeria de a pessoa torturada ter um histórico de maldades que justificasse o sacrifício dela em prol da humanidade, dependeria da maneira como a pessoa torturada interpretaria a situação, dependeria do conceito de “felicidade” e de uma definição mais detalhada sobre o que se deve entender por “a humanidade ser eternamente feliz”.
Os astecas e muitas outras culturas primitivas sacrificavam virgens, acreditando que com isso teriam melhores colheitas, evitariam estiagens e desastres naturais, e essas virgens se sentiam honradas por serem escolhidas para estes rituais. Alguns terroristas, assim como os antigos kamikazes, sentiam orgulho de se sacrificar por uma causa que julgavam ser nobre e elevada. Na entrevista com Sandra Silva, a impressão que ela passa é de uma pessoa que está disposta a sacrificar sua vida pela possibilidade de futuramente a humanidade dispor de uma alternativa para viver num planeta próximo. Antes da entrevista com ela, eu via o projeto “Mars One” com maus olhos, mas depois me pareceu que ela compreende os riscos e consequências, e está disposta a isso, porque ela acredita que assim estará contribuindo para um bem maior. Não sei se ela está certa, mas na situação colocada para Aliôcha, em que o bem maior era condicionado a um mal individual, isso simplificaria a análise do caso.
Outro ponto é a rivalidade. Microrganismos que causam doenças são rivais de humanos. Para que um viva, o outro deve ser destruído. Sob o ponto de vista dos vírus, caso eles pensassem, ou um advogado os representasse, eles deveriam ter o direito de viver e evoluir para organismos mais complexos que futuramente pudessem ser melhores que os humanos, eles oferecem menos riscos ao clima no planeta que os humanos, eles teriam maior probabilidade de sobrevivência no caso de uma queda de asteroide no planeta, ou explosão de uma hipernova próxima, ou qualquer anomalia significativa nas condições climáticas. Em contrapartida, sob o ponto de vista dos humanos, a maximização do Bem dependeria de privilegiar a existência dos organismos mais preocupados com Ética, e os humanos ocupam o topo nesse item. Mamíferos, principalmente os domesticados, também demonstram solidariedade, sacrificam-se ou colocam-se em risco para proteger outros de mesma espécie ou até de espécies diferentes, e esse comportamento nos animais domésticos reforça a tese de que eles adquiriram estes hábitos a partir do convívio com humanos. Se os vírus podem evoluir para organismos melhores que os humanos nos próximos bilhões de anos, é muito provável que os humanos, que já estão muito à frente, evoluirão para organismos ainda melhores do que alcançariam os descendentes dos vírus após transcorrido um mesmo intervalo de tempo.
Então me parece que uma análise imparcial indica que os humanos deveriam ter primazia sobre os vírus, não apenas porque somos humanos e nossa análise é tendenciosa a nosso favor, mas mesmo numa tentativa de avaliar com imparcialidade, chega-se à conclusão de que provavelmente a proteção dos humanos contra os vírus resulta num Bem maior. Por extensão, o argumento se aplica aos animais domésticos, que merecem primazia sobre os selvagens e os animais de abate, embora esta primazia seja numa proporção menor.
Há o perigo de que a escolha da maximização do Bem como critério seja enviesada, e que o critério escolhido foi este porque os humanos se sobressaem neste. Mas me parece que para qualquer organismo, inclusive os que não estão no topo, este seria um critério bastante justo. Se a humanidade fosse dominada por alienígenas mais éticos que os humanos, e eles passassem a ocupar o topo do nível de privilégios, eu não gostaria, porque a humanidade seria prejudicada com isso, mas no conjunto estimo que seria melhor para o Bem. Portanto o critério me parece adequado, inclusive numa situação em que eu fosse prejudicado, embora eu não apreciasse essa situação, mas não discordaria de ser comparativamente mais justa do que se os humanos ocupassem uma posição mais elevada que a dos alienígenas, caso os alienígenas fossem mais éticos.
Outro problema a considerar é que todas as variáveis personalógicas, assim como as cognitivas, não são igualmente desenvolvidas em todos os organismos de uma espécie. Alguns humanos são muito mais éticos que outros, e o mesmo ocorre em qualquer outra espécie do planeta e de outros planetas. Então, embora estes alienígenas hipotéticos fossem, em média, mais éticos que a média dos humanos, alguns alienígenas seriam menos éticos que alguns humanos. Assim os humanos estariam sujeitos a receber tratamentos abusivos por parte de alguns alienígenas cruéis, como alguns animais sofrem abusos de alguns humanos.
Para maximizar Justiça e Bondade, a hierarquia deveria ser individual, em vez de aplicada igualmente a todos os integrantes de cada espécie (especismo). Neste caso surgiriam outros problemas: como avaliar com precisão a posição hierárquica justa para cada indivíduo? Como reconhecer um organismo que seja de fato mais ético, em comparação a outro que finge ser mais ético para desfrutar mais privilégios? Como assegurar que os autores e examinadores dos testes utilizados para medir o nível ético são capacitados para tal avaliação? Enquanto não fosse possível resolver adequadamente esses problemas, talvez a classificação por espécie fosse uma solução temporária adequada.
Então, sob este prisma, o combate de humanos a insetos, vírus e outros organismos nocivos pode ser interpretado como justo (com reservas), assim como a proteção aos animais domésticos ser maior que a outros animais, e as leis que protegem e conferem direitos aos humanos serem mais vantajosas que as leis que protegem os animais.
Um dos pontos fundamentais que não se pode perder de vista é que a partir do momento que um organismo aceita para si ou para seu grupo alguns benefícios que implicam o prejuízo de outros grupos ou outros indivíduos, automaticamente este organismo que aceita um privilégio passa a merecer menos, por tolerar o prejuízo alheio em benefício próprio. É fundamental que tenha consciência e autocrítica e prefira renunciar a certos privilégios, mesmo que os mereça, do que correr o risco de aceitar para si mais benefícios do que merece. Também é fundamental não inverter a escala de valores.
Uma declaração famosa de Schopenhauer é que “o caráter de uma pessoa se conhece pela maneira como ela trata os animais”. Ele cita os animais, mas de forma geral se aplica a casos nos quais a pessoa trata com respeito e dignidade qualquer organismo, seja de sua mesma espécie ou não, sem esperar alguma recompensa por isso, sendo seu ato movido por uma questão de princípios.
Há pessoas que tratam bem determinados animais (como Calígula a Incitatus, por exemplo), mas não tratam com respeito e dignidade os humanos, nem a maioria dos outros animais. Em casos assim, a opinião de Schopenhauer estaria totalmente inadequada.
O caso de Calígula e seu cavalo é um exemplo claro de inversão na escalda de valores. O caso de Madre Tereza de Calcutá é outro exemplo, em que ela merecia mais do que dava a si mesma, e isso também constitui um erro, porque implica injustiça contra si mesma. Estimo que Sócrates e Gandhi tenham sido exemplos bastante razoáveis de equilíbrio e justiça, levemente mais inclinados a renunciar a benefícios que mereciam, do que a aceitar algo além de seus méritos.
Outro ponto importante é que não se deve focar em ajudar a quem precisa, mas sim ajudar a quem merece. Madre Tereza não fazia esta distinção, nem dispunha de informações para isso, nem procurava obter tais informações. Com isso, é possível que ela tenha contribuído para salvar a vida de muitos assassinos, estupradores, sequestradores e até políticos, que tenham causado muito mal devido aos erros que ela cometeu.
A intenção de Madre Tereza foi louvável, mas o resultado prático que ela alcançou é questionável. É bem diferente do estilo de Sócrates, por exemplo. Ele não dava comida, abrigo ou fé às pessoas. Em vez disso, ele incentivava as pessoas a pensar, a refletir de maneira mais profunda e criteriosa sobre os mais variados temas, as levava a reconsiderar seus antigos dogmas, a transcender, a se elevar intelectualmente e moralmente, para que se tornassem pessoas melhores, capazes de fazer um mundo melhor para todos.